A neurociência na vida da escola

Contribuições e diálogos com o Nosso Modo Próprio de Educar

Há passos dados pelo conhecimento humano que desbravam e ressignificam rotas, comportamentos e perspectivas de tal maneira que já não há como não serem considerados. É disso que estamos falando no que se refere aos estudos sobre o funcionamento do cérebro humano, cujo desvelamento através da neurociência possibilita diversos novos olhares sobre o saber ser, o saber fazer, o saber conhecer e o saber conviver na escola. Vamos ressaltar alguns processos que envolvem a aprendizagem humana, enquanto dialogamos, de maneira orgânica, sobre a aplicação da neurociência em nossa vida na escola, referenciando alguns aspectos-eixo do Nosso Modo Próprio de Educar, documento base das escolas da Rede Filhas de Jesus.

 

Aprendizagem e afeto: uma relação indissolúvel

Aprender significa produzir memórias. Do ponto de vista conceitual, aprende-se um saber que seja significativo o suficiente para se conectar com saberes anteriores que lhe sejam, de alguma maneira, correlatos, visto que nosso cérebro busca padrões. A memória é, pois, a base de todos os saberes. É ela que efetivamente está implicada nos processos que significam ser e estar no mundo, pois é nela que reside a lembrança que precisamos evocar para expressão de sentimentos, para planejamento, resolução de problemas, atenção e julgamento crítico.

O corpo capta experiências vividas e estas são evocadas de modo a repetirmos os acertos e evitarmos os erros. Traduzindo esse processo para a neurobiologia, a experiência se dá por impulsos nervosos disparados a partir dos sentidos a determinadas áreas do cérebro que por sua vez respondem com sinapses, também por impulsos elétricos, conduzidos pelos axônios presentes nos neurônios que entregam, com ajuda de neurotransmissores específicos, as mensagens captadas. É nesse momento que a mágica se dá: uma aprendizagem aconteceu, ou uma resposta foi demandada, porque houve essa conexão.

Houve o processo sináptico. Lembrar requer evocar o que ficou armazenado em representações, sensações e sentimentos a partir de experiências que podem ter sido vivenciadas concretamente ou experimentadas cognitivamente, através de fantasias, de construções criativas imaginadas, de interações com o meio e/ou com os outros. A memória é, pois, um processo ativo de codificação, armazenamento e recuperação de nossas experiências.

Isto posto, em se tratando de educação, qual é a importância da qualidade positiva das experiências cognitivas provocadas nos processos de ensino-aprendizagem? Exatamente este aspecto: experiências positivas promovem desejo de repetições e de movimento, enquanto, ao contrário, experiências negativas, acarretam recusa e encolhimento, uma vez que não se deseja repetir aquilo que provoca desconforto.

É imperativo, então, que as relações entre aprendente, educador e objeto de conhecimento sejam pautadas em bem-estar, harmonia e alegria: “(…) relações que criam um ambiente cordial, de proximidade e de confiança mútua (educando/educadores), buscando espaços para a comunicação e o diálogo aberto e sincero.”(NMPE- 105)

 

O ambiente educador

Parafraseando Loris Malaguzzi, o ambiente é considerado o terceiro educador, após a família e os professores. Através das vivências realizadas nos diversos espaços, o aprendente tem maiores chances de interação e de aprendizagens. Estas, entretanto, serão bem sucedidas tanto maior for a sensação de segurança percebida, uma vez que no cérebro do aprendente nessa qualidade de ambiente, a serotonina terá sua circulação preservada. Por ser o neurotransmissor responsável pela sensação de bem-estar, recentes estudos corroboram a relação entre sua presença e a velocidade da aprendizagem, considerada sua atuação nos processos de tomada de decisão para resolução de situações problema: “Não é possível o crescimento e o amadurecimento em um ambiente triste e desiludido”. (NMPE, 109)

Aliando-se a sensação de bem-estar gerada por um ambiente seguro, em que o acolhimento seja marca das relações entre educadores e educandos, à atitude colaborativa, isto é, pautada em interação entre sujeitos da ação educativa, temos terreno fecundo para a produção de dopamina, outro neurotransmissor essencial para a aprendizagem. Responsável pelo mecanismo de recompensa, a dopamina é liberada em situações pedagógicas em que o educando percebe seu avanço, seu sucesso, por ter melhorado seu desempenho, por ter conseguido realizar alguma tarefa, ou mesmo por ter conseguido responder a uma questão, desde que o feedback recebido por essas circunstâncias tenha sido encorajador, expresso em palavras e/ou gestos de seus professores e colegas, apontando para a confiança em seus potenciais e impulsionando-o para o desejo de saber sempre mais. O cérebro reage a condições favoráveis de segurança, bem-estar, e autoconfiança com a produção de neurotransmissores indispensáveis para que se deem conexões neuronais que, como já vimos, consolidam-se em aprendizagens significativas, assim chamadas por se ancorarem em saberes anteriores, ampliando a teia do conhecimento de que a plasticidade cerebral é capaz.

 

Protagonismo do sujeito que aprende

Como já mencionado anteriormente, não há aprendizagem significativa quando não houver uma implicação objetiva do educando com o saber que se queira converter em aprendizagem. Quanto maior for o número de canais de percepção, recepção e sensação ativados no contato com um objeto de conhecimento, mais habilidades serão desenvolvidas porque tanto maior será o recrutamento de áreas do cérebro simultaneamente.

“A participação ativa dos sujeitos na aprendizagem e no próprio amadurecimento e, com oportunidade de protagonismo, é uma fator indispensável à educação personalizada, concebido como processo pessoal, contínuo e dinâmico. ” (NMPE- 112)

Remontemos aqui ao legado deixado por Vygotsky quando descreveu a Zona de Desenvolvimento Proximal como a distância entre o que se sabe e o que se deseja saber, e provoquemos, mais uma vez, para a necessidade sempre urgente de uma pedagogia baseada na pergunta. Por quê? Porque assim como a interatividade e a atitude colaborativa são imprescindíveis para que o aprendente se veja implicado no processo de ensino-aprendizagem, as conexões neuronais só se efetivarão se houver uma inquietação cognitiva frente ao objeto de conhecimento em questão provocada justamente por perguntas autorais, isto é, pelo desejo genuíno de saber.  Uma informação transforma-se em conhecimento somente quando passa pelo entendimento, e este requer interesse, conveniência, utilidade e significância para que se converta em memória de longo prazo.  Na economia cerebral, armazena-se o que for relevante, útil e significativo. Todo o resto é esquecimento!

 

Foco na atenção… Atenção no foco!

Aprender requer movimento. A postura passiva que se observava na metodologia já ultrapassada, que podemos chamar de vertical, em que o educador protagoniza a aula, enquanto o educando recebe essa ação como ouvinte e executante de tarefas, comprova-se ineficiente frente a uma geração conectada em dispositivos eletrônicos, alfabetizada digitalmente, com acesso à informação instantaneamente através da internet. Aprender ultrapassa o encontro com a informação, pois requer disposição, interesse, sensibilização, significação e repetição. A complexidade desse processo, que podemos, sim, chamar de aula, requer do aprendente foco e atenção programados. Algumas estratégias reunidas no conceito já tão explorado de metodologias ativas podem ser aplicadas para que essas habilidades estejam presentes no processo de aprendizagem: segmentar um conteúdo para que se avance em etapas; oferecer pausas estratégicas para que o aprendente possa partilhar com um colega o que já assimilou do assunto em estudo; promover momentos em que os educandos ensinam os assuntos pesquisados, lidos, anotados , etc, pois no ato de ensinar vivencia-se a metacognição, importante recurso mental dialógico que permite reconhecer o que se sabe, e questionar-se sobre o que é necessário para se saber o que se pretende.

Embora seja sabido que o cérebro apresenta plasticidade neuronal que potencializa novas aprendizagens, os estudantes precisam sentir-se implicados nas atividades e temas trazidos para a sala de aula. Uma estratégia que favorece essa condição é a proposição de diferentes atividades simultâneas, em circuito, com a possibilidade de escolha da tarefa pela qual se queira iniciar o circuito. O simples ato de eleger a atividade que se queira realizar desencadeia uma série de processos metabólicos e neuronais que potencializam a aprendizagem. Importante considerar que situações que reflitam o contexto da vida real sempre têm maior chance de se converterem em aprendizagens significativas, dado que a nova situação poderá se ancorar na compreensão anterior, integrante do repertório do aprendente. Se o cérebro foi evolutivamente concebido para perceber e gerar padrões quando testa hipóteses, promover situações em que se aceite tentativas e aproximações ao gerar hipóteses, seguidas de apresentação de evidências, é um caminho eficaz para as aprendizagens e isso pode ser especialmente experimentado em dinâmicas de resolução de casos e em vivências de simulações, sempre considerando a possibilidade do debate, da interação, do estudo colaborativo entre pares. Importante lembrar que somos produto de história e de cultura, razão pela qual as múltiplas linguagens precisam permear o ser, o estar, o fazer e o aprender no âmbito pedagógico.

Em suma, frente aos estudos em neurociência, a sala de aula converte-se em laboratório colaborativo de construção coletiva de saberes em múltiplas linguagens, com a mediação de um educador atuante, ativo e encorajador. E que não percamos de vista que a costura de todo esse tecido, entendido aqui como saberes advindos da cultura escolar-acadêmica, é antes de tudo o amor, que “se pretende seja o princípio de toda ação educativa, por ser a motivação última pela qual nós (educadores) nos entregamos a esse serviço…” (NMPE-119)

 

Referências:
Neurociência e Educação- Como o Cérebro Aprende – Ramon M. Cosenza e Leonor B. Guerra- Editora Artmed-2011

Neurociências de Bolso: A contribuição das Neurociências para o processo da aprendizagem escolar – Marta Relvas, Editora do Brasil, 2021

Marta Relvas, no programa Janela do Saber, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=RX2mVNhGyjo&t=324s

Prática Docente- Maria Alice Proença- Editora Panda- 2018
“Nosso Modo Próprio de Educar”- Documento Referência – Filhas de Jesus- 1994

 

Por Maria Renata de Freitas Adrião D´Angelo
Vice-diretora e coordenadora pedagógica no Instituto Educacional Imaculada-Campinas
Neuropsicopedagoga, especialista em Metodologia do Ensino de Filosofia e em Saúde Mental Escolar, pedagoga, licenciada em Letras, psicanalista e escritora.

 

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