Liderança Servidora

Quando ouvimos falar em liderança, logo imaginamos algum novo livro de coaching ou um curso de mentoria para líderes. E, de fato, há para todos os gostos! O que gostaria de tratar aqui, porém, vem de um outro lugar. De um tempo no qual não existia a ciência administrativa, os fluxos profissionalizados de gestão, os sistemas ERPs (Enterprise Resource Planning – Planejamento de Recursos Empresariais) ou as ferramentas de negócios inteligentes (BI). Refiro-me à longínqua época do Êxodo, entre os séculos XVI e XV a.C. E tomo como referência o capítulo 18 do livro do Êxodo, versículos 13 a 27. O que esse texto propõe que ainda nos serve para o exercício atual da liderança?

Uma história exemplar

Vou contar a história da liderança servidora de Moisés, e refletir com ela. Assim, quem porventura ler esse texto, poderá acompanhar o enredo, formulando as suas próprias questões interiores ou dialogando com os seus pares. Que tal você parar por uns instantes para fazer a leitura de Êxodo 18, 13 a 27? Eu espero você aqui.
Se você leu, já percebeu que o texto se refere a uma situação inusitada, na qual Moisés, o líder, permanece o dia todo recebendo e resolvendo as demandas que o povo traz para ele. Ele recebe a feliz visita de Jetro, seu sogro; um experiente pastor nômade. A experiência do pastoreio forjou nele a sabedoria necessária para cuidar e conduzir, dois aspectos centrais da atividade de um pastor. Quando Jetro viu o que Moisés estava fazendo, ficou muito preocupado. Bondosa e firmemente, deu ao genro alguns valiosos conselhos.

A rotina e a gestão por demanda

O texto começa assim: No dia seguinte (Ex 18, 13 – de agora em diante, utilizarei apenas o número do versículo na citação). Isso indica o que Moisés estava acostumado a fazer, diariamente. Ele o faz porque em algum momento começou a fazer, repetiu, voltou a fazê-lo; e isso se estabeleceu como uma cultura daquela organização. Sua liderança está no automático e totalmente determinada pelas demandas. Peter Drucker, um dos gurus da gestão, diz que a “rotina devora a estratégia todo o dia, no café da manhã”. Ou seja, se não há estratégia, não há liderança. Quem comanda são os problemas e as demandas. E o chefe, tem a ilusão de que manda. O povo, a sensação de que tem alguém para demandar.

O olhar clínico-crítico-dialógico

Jetro certamente percebeu que, na tentativa de liderar, Moisés estava perdendo a mão da sua intenção servidora. Mas ele não interveio imediatamente. Provavelmente, nas conversas informais, Moisés deve ter reclamado do muito trabalho, de como tinha que atender o povo o dia todo, de sua sobrecarga de trabalho, da falta de tempo, etc… No dia seguinte, Jetro observou tudo com os seus próprios olhos, para saber o que de fato estava acontecendo. Então, depois de outro dia cheio, Moisés precisou ainda ouvir o seu sogro. Jetro faz duas perguntas, que pretendem fazer Moisés pensar: “Que é isso que fazes com o povo? Por que te assentas sozinho, e todo o povo está em pé diante de ti, desde a manhã até o pôr-do-sol?” (v. 14). A rotina tem o poder de nos absorver nela. Somente um sério questionamento sobre a própria prática consegue provocar algum distanciamento. Moisés, por estar fazendo dia após dia a mesma coisa, já não consegue ver e discernir o que faz. As perguntas têm a finalidade de provocar esse discernimento.

A humildade

Jetro, no seu primeiro dia de visita, já percebeu o erro de Moisés. Ele pretende encontrar um meio de ajudar Moisés cair em si. Daí é que pergunta e espera Moisés responder. Na resposta, Moisés conta o que o próprio Jetro já percebera. Mas, o fato de narrar a prática já é revelador. O povo vem até ele para que ele ensine o que devem fazer. Depois de ouvir, Jetro, com palavras francas, diz a Moisés: “Não é bom o que fazes! Certamente desfalecerás, tu e o povo que está contigo, porque a tarefa é muito pesada para ti; não poderás realizá-la sozinho” (v. 17-18). A humildade tem algumas características neste texto: primeiro, a aceitação do olhar crítico do outro – quem cultiva a humildade sempre considera que o outro pode ter razão, por isso, o escuta; segundo, a atitude de rever a própria prática e considerar que ela pode ser mudada; terceiro, agir para mudar a própria mentalidade e, concomitantemente, a prática. Só quem é humilde consegue fazer isso. Para o arrogante, o erro sempre é do outro.

Representatividade

O primeiro aspecto do conselho é a representatividade. Na situação anterior, cada membro levava a sua demanda a um único líder. Não há, portanto, lideranças; senão um único chefe. Uma liderança somente pode ter esse nome caso outras pessoas forem por ela inspiradas também a servir. Elas sentem-se, então, representantes de um serviço, não ocupantes de um cargo. No caso de Moisés, não havia nem líder, nem povo; mas um chefe e uma multidão. A representatividade consiste, pois, no compartilhamento da autoridade, que se exerce pelo serviço.

Formação pessoal e profissional

Para exercer com eficácia a liderança, Jetro indica o segundo aspecto do conselho: formação, capacitação e treinamento. Pela formação, os líderes aprendem os estatutos e as leis (v. 20). Esses contêm as finalidades, a missão, os valores, a visão de uma organização. São aquelas diretrizes que nasceram com o surgimento da organização. A sua razão de ser; seus fundamentos. Respondem à pergunta: por que e para quê existimos?
A capacitação orienta os caminhos a serem seguidos (v. 20) para que a missão possa ser realizada, os valores vivenciados e a finalidade alcançada. Aqui entram as metas. Trata-se de responder à pergunta: que caminhos devemos seguir para atender à necessidade e alcançar a finalidade? Já o treinamento pretende dar conta das atividades que devem ser feitas (v. 20). Ele está relacionado aos dois anteriores e foca nos procedimentos a serem realizados em cada nível de gestão, a fim de garantir a execução das decisões.

A escolha das pessoas

Somente depois da consciência de que a autoridade tem de ser representada por diversas lideranças e da formação pessoal e profissional dessas lideranças, é que Jetro sugere a escolha de líderes. E, para tanto, oferece alguns critérios, no versículo 21: capacidade – pessoas capazes: evoca aqui aqueles saberes necessários para o exercício de uma profissão; fazer o que precisa ser feito – tementes a Deus:

trata-se, não de fazer o que gosta, o que pensa que é certo, mas aquilo que é preciso fazer para que a missão se realize,

dentro dos respectivos valores; segurança – seguros: pessoas que tenham opção pela causa e afinidade de valores; ética – incorruptíveis: quem demonstra idoneidade, honestidade, senso de justiça, enfim, pessoas que cultivem a virtude.

A distribuição das responsabilidades

Os líderes são escolhidos, não para que o chefe delegue atividades, mas para que as responsabilidades sejam distribuídas entre as lideranças. Líderes de mil, de cem, de cinquenta e de dez (v. 21). É necessário que se definam: quais decisões somente podem ser tomadas em conjunto? Quais decisões cada liderança tem a responsabilidade de tomar? Quais decisões precisa delegar a outras? Isso tudo para evitar acúmulo de funções e promover o compromisso de todos/as com a missão. Temos aqui uma rede de responsabilidades que, articuladas entre si, tornam a gestão mais leve, célere e comprometida.

Os sete dons e o exercício da liderança servidora

Se meditarmos esse texto, perceberemos que nele repousa um exercício dos sete dos do Espírito Santo. A Sabedoria e o Conselho são representados por Jetro: ele se aproxima, escuta, observa, aconselha, acompanha e se retira. O Entendimento, a Ciência e a Fortaleza se constroem com o processo, envolvendo todas as lideranças: aprendizagem dos estatutos e leis, construção dos caminhos, engajamento na prática, tornando a organização forte e o fardo leve para todos. A Piedade e o Temor de Deus são encarnados pelas atitudes de Moisés: é humilde para escutar, aceita o conselho, muda a sua prática, faz o que precisa ser feito, não se apega ao poder, dá mais importância para a missão do que para o cargo, distribui as responsabilidades.

A excedência com excelência

As características da liderança servidora se constroem no interior da abundância da graça e da magnanimidade do carisma. Bento XVI, em Caritas in Veritatis, Sobre o Desenvolvimento Humano Integral, diz que “Por sua natureza, o dom ultrapassa o mérito; a sua regra é a excedência” (CV, n. 34). Trata-se, aqui, de uma inversão de perspectiva, que nos convida a uma verdadeira conversão. O mundo do mercado neoliberal orienta para a performatividade meritocrática – traduzindo: ser melhor do que os outros, a qualquer custo. Já a proposta da liderança cristã servidora é gerar vida em abundância para todos (Jo 10,10). As lógicas são inversas: na primeira, a lógica é obter para si; na segunda, é servir aos outros. A surpresa vem com o resultado: na lógica performativa, quanto mais se obtém somente para si, mais estresse, ansiedade, falta de sentido e vazio existencial. Ao contrário, na perspectiva da liderança servidora, quanto mais se entrega gratuitamente aos outros, quanto mais nos doamos em serviço, maior será a nossa alegria e nossa realização.

O testemunho de Santa Cândida

Talvez, por conta da sua experiência de manancial divino, Santa Cândida nos legou a graça de vivermos a entrega. Quando, diante do altar do Santíssimo, em 2 de abril de 1869, sentiu-se profundamente chamada a “Fundar uma congregação com o nome de Filhas de Jesus, dedicada à salvação de almas, por meio da educação cristã e instrução de crianças e jovens”, já havia nos incluído na alegria do evangelho e no exercício da liderança servidora.

Por Rodinei Balbinot

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