Resumo: O texto aborda a necessidade do cumprimento da lei 10639, que tornou obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira nas escolas, mostrando as lacunas dessa realidade no ensino de música e sugerindo o conceito de artes musicais do professor Meki Nzewi como metodologia de trabalho na educação musical.
Ao longo do século XX a intelectualidade negra brasileira vem reivindicando, junto ao Estado, a implementação de políticas públicas educacionais de acesso à educação e de conteúdo da cultura negra nos currículos: o Congresso do Negro Brasileiro, as políticas de cotas, as Leis nº 10.639 e nº 11.645 foram algumas dessas conquistas que propiciaram a publicação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais em 2004.
Vinte anos se passaram e ao longo desse tempo, especificamente na educação musical, pesquisas como as de Queiroz (2023) e de Candusso (2023) revelaram como essa área vem se debruçando sobre a reflexão de metodologias de pesquisa frente à diversidade cultural. Os autores apontam a necessidade da atualização de ementas, mudança na concepção do ensino, das formas de avaliar, da escolha de repertório, entre outros constituintes da didática, no anseio de romper com a lógica de valorização a certas identidades musicais em detrimento de outras. Não se pode pensar o fenômeno musical em sala de aula, como uma manifestação apenas sonora, mas atravessada por saberes e práxis culturais.
Em relação a cultura negra, Döring (2018) aponta que ainda há uma carência de estudos sobre a história, desdobramentos e criações das artes musicais africanas pois na formação dos professores de música “pouco se estuda e dialoga (…) com as culturas e músicas da diáspora africana” (DÖRING, 2018, p. 140). Não há como ministrar uma aula de música de conteúdo afro-brasileiro se esse educador não tiver tido em sua formação aspectos da cultura africana. O ensino superior reflete na educação básica. Mas a lei 10639 deve ser cumprida.
Uma possibilidade é recorrer a sites de busca acadêmica e investigar pesquisas de autores africanos. Assim, eu o fiz, e encontrei o conceito de artes musicais indígenas africanas do professor de música nigeriano Meki Nzewi.Artes musicais está associado não apenas a prática de música em si, mas aborda uma prática social, algo amplamente ligado ao organismo coletivo de diferentes países e povos da África Subsaariana. Elas têm a função de propiciar a organização de uma dada comunidade através de ações artísticas performativas que vão para além de uma estética de entretenimento, pois “a música não é um conhecimento e sim uma energia, uma força vital para vida não apenas subjetiva, mas para a vida coletiva” (NZEWI, 2019, p. 70). De acordo com essa filosofia, a música não é um passatempo, nem se almeja com ela apenas a virtuosidade técnica. A performance das artes musicais africanas é um acontecimento expansivo, coletivo, único, criativo e espiritual. As artes musicais são, portanto, uma expressão singular para se referir à ideologia criativa holística de atuação na África ancestral.
A motivação da performance é mais objetiva do que subjetiva, seu valor encontra-se extrínseco a si mesma e não intrínseco à sua representação artística. O que importa são os efeitos de dada performance em seu contexto, pois a arte na África é voltada para o serviço público e o componente estético é vivenciado e expresso interativamente. Além disso, o aspecto musical é apenas parte da expressão de uma cultura cosmológica mais abrangente: a música se interliga a outras expressões artísticas como teatro, poesia, dança e indumentária, enaltecendo a concepção holística da ação musical.
Em suma, para que a educação musical seja planejada sob o prisma das sociedades africanas originárias, é preciso propiciar experiências performativas, integrando as artes, que tem a função não apenas de apreensão de conteúdos artísticos, mas também de humanizar os sujeitos, pois fazer música faz parte de algo maior. Música não é apenas frequência sonora que chega aos nossos ouvidos. Músicas africanas são parte de narrativas e acontecimentos sociais profundos.
Na pesquisa de Dargie (1996), sobre a educação musical do povo Xhosa, ele percebeu que o que move a aprendizagem de música é poder compartilhar esse conhecimento com a comunidade, pois a música não é entendida como um bem pessoal. Ser musical significa pertencer àquele grupo. “O sentido da dança, do toque do tambor, do mito, (…), dos rituais em geral e dos artefatos, gira em torno dos seres humanos da comunidade: a família.” (LOPES; SIMAS, 2020, p.32).
Dessa forma,
uma aula de música que acolha a educação étnico-racial da cultura negra, deve promover atividades que: incluam instrumentos musicais, canto, dança, poesia, teatro e indumentária; priorizem o grupo, visando o compartilhamento musical e não somente o desenvolvimento individual; promova a conscientização da sociedade; utilize um repertório variado, nacional e internacional incluindo ritmos africanos e afrodiaspóricos. E é claro, e principalmente, promova o antirracismo, a igualdade e o respeito entre todos e todas independente da cor.
Referências:
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica […]. Diretrizes curriculares nacionais gerais da educação básica. Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013.
CANDUSSO, Flavia; SANTOS, V. S. . Entre consciência negra/indígena e privilégio branco: por uma educação musical antirracista que começa em nós. In: Viviane Beineke. (Org.). Educação musical: diálogos insurgentes. 1ed. São Paulo: Hucitec, 2023, v. , p. 43-64.
DARGIE, Dave. African methods of music education: some reflections African Music. Journal of the International Library of African Music, África do Sul, v.7, n. 3, pp. 30-43, 1996.
DÖRING, Katharina. Estética e filosofia das artes musicais africanas na perspectiva da educação musical na América Latina. Orfeu, Santa Catarina, v. 3, n. 2, p. 136-163, 2018.
LOPES, Nei; SIMAS, Luiz Antônio. Filosofias Africanas: uma introdução. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020.
NZEWI, Meki. Restoring the pristine humanning potency of music education anchored on stimulating assessment practice. Journal of Nigerian Music Education, Nigeria, v. 11, n. 1, p. 1-22, 2019.
QUEIROZ, Luis Ricardo Silva. Currículos criativos e inovadores em música: proposições decoloniais. In: BEINEKE, Viviane. (org.). Educação musical: diálogos insurgentes. São Paulo: Hucitec, 2023. p. 191-241.
Por Beatriz Bessa
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